quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

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.rio quarenta graus.


                                                                                                                             Quando a gente era pequeno,
pensava que quando crescesse
Ia ser namorado da Brigitte Bardot,
mas a a Brigitte Bardot
está ficando triste e sozinha. - Tom Zé

Quando precisávamos gravar cenas demasiadamente dramáticas ela trancava-se no camarim para fumar. Era longo o seu cigarro e na vitrola tocava sempre o Abbey Road, dos Beatles. Deixava acessas apenas as luzes que emolduravam o espelho e sentava-se de lado na poltrona de veludo bordô, jogando as pernas por cima do braço do estofado. Ela era uma estrela com suas escovas de cabelos coloridas, seus sapatos de bico fino e sua fotografia 30X15 de Louise Brooks fixada na parede. A fumaça do cigarro tomava conta do cômodo e compunha ares de mistério ao ambiente; a névoa tóxica dançava na meia luz amarelada. Eu acreditava que aquele cigarro era a fonte dos seus segredos, do seu magnetismo.
Ninguém nunca ousava interrompê-la. Esperávamos pacientemente do lado de fora, sentados nos enormes caixotes pretos da produção.
Antes de gravarmos uma cena romântica na qual sua personagem acusava-me de ter dedos feios e uma linha do sucesso curta, ela veio ao meu encontro na lanchonete defronte a locação. Era aquele o meu momento de concentração; depois de tomar um café fiquei analisando meu reflexo na porta suada do refrigerador vermelho que reclamava, zunia e tremia, esforçando-se para manter geladas todas aquelas latas de Coca-Cola apesar do calor do verão. 
Eis que ela surgiu atrás de mim, inexpressiva, borrada na porta do refrigerador ranzinza.
- Você está pronto? - Interrogou.
- Acho que sim. - suspirei e me voltei para ela - E você?
- Eu estou sempre pronta.
Arqueei as sobrancelhas, intimidado. Ela aproximou-se, pousando os braços sobre meus ombros como se fossemos começar a dançar bem ali. Permaneci imóvel, completamente desprevenido e acanhado por sua beleza e superioridade.
- Sabe… - ela começou - Somos um par romântico e eu não consigo sentir nada por você. Sem química - ela deitava a cabeça de um lado para o outro como se estivesse seguindo o ritmo de uma canção - Você tem exatamente três minutos para fazer eu me apaixonar perdidamente por você.
Minha garganta contraiu-se de incredulidade. Era apenas uma piada ou um apelo real? E tinha os olhos dela, muito perigosos e pretos, o olhar sério e sensual das atrizes dos anos quarenta. O desenho perfeito dos lábios sutilmente entreabertos, finos e tristes, e o rosto magro como o de uma boneca. Ela possuía a incrível capacidade que caracteriza a genuína femme fatale: era onipresente. Nos anúncios publicitários, nos devaneios, nas memórias. Mas ela nunca estava realmente lá. 
Sentia-me aturdido. Pigarrei como que tentando ganhar tempo para encontrar a resposta certa. Conferi rapidamente meu relógio de pulso:
- Bem, considerando que temos só um minuto restante, a única maneira de você se apaixonar por mim seria isso aqui ser um filme. 
Ela sorriu firme. Seus olhos marejaram espontaneamente e ela alargou mais o riso. Passava uma impressão convincente, sincera. Eu estava fascinado. 
Deixou as mãos escorregarem pelo meu peito. Em seguida, enxugou as bordas dos olhos, limpando as lágrimas e os vestígios de maquiagem borrada. Satisfeita, dando-se por vencedora de algum tipo de desafio, afirmou:
- Eu não falei que estava sempre pronta?
Eu não entendia nada a respeito do amor. 
Mais tarde, após a gravação da tal cena romântica e das marcações, ela convidou-me para beber algo em seu camarim. Tomamos vinho tinto italiano, discutimos Deus, a perversão dos homens, a guerra dos sexos e o sofrimento.
O cinzeiro de vidro azulado sobre a penteadeira estava vazio e com um aspecto muito limpo.